Ensino nas horas difíceis
Em 2007, quando entraria no Ensino
Fundamental, o pequeno índio wapixana Frank Silva ficou doente. Teve um câncer
diagnosticado e precisou sair de Roraima, onde morava, para buscar ajuda
especializada. Desde o ano passado, está internado em São Paulo. Mas não foi
esse imprevisto - nem a forte medicação que vem tomando - que o deixou fora da
escola. Matriculado desde o começo do tratamento em uma classe dentro do
Hospital do Câncer, ele não só foi alfabetizado como já está na 2ª série.
Frank é uma das 65.956
crianças que estudaram em salas adaptadas ou no
próprio leito em 2007, segundo o Censo Escolar do Instituto Nacional de Estudos
e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Apesar do público numeroso, a
modalidade ainda não é uma realidade em todo o território nacional. O próprio
Ministério da Educação (MEC) reconhece que há carências graves pelo país - são 850 hospitais oferecendo o atendimento, em um universo de quase 8
mil unidades.
Além disso, especialistas alegam que as
experiências em curso nem sempre ocorrem num contexto ideal. "Há o déficit
de profissionais para atuar do 6º ao 9º ano. E, em muitos lugares, o voluntário
ainda atua no lugar do educador", diz Eneida Simões da Fonseca, professora
do Departamento de Estudos em Educação Inclusiva e Continuada da Universidade
Estadual do Rio de Janeiro. Na prática, é a equipe médica que deve acionar as
secretarias de Educação assim que um estudante da rede pública dá entrada com
alguma doença severa (para os oriundos da particular, é a própria escola que
deve providenciar o serviço). Em alguns estados e municípios, já existe
inclusive um quadro de docentes previamente concursados e preparados para a
função, e é junto a esses órgãos que interessados no emprego devem procurar
orientações. "Cabe aos governos locais oferecer a mão-de-obra e as
capacitações necessárias. Tudo para que o aluno se atrase o mínimo possível no
ritmo de sua turma original", diz Martinha Dutra dos Santos,
coordenadora-geral da Secretaria de Educação Especial do MEC.
Apesar de ser chamada tecnicamente de
classe, a aula é individual, nos leitos ou em salas cedidas pela unidade de
Saúde. Diferentemente de uma escola regular (onde é possível fazer atividades
de longa duração), cada tarefa precisa ter início, meio e fim no mesmo dia.
"É um ritmo estranho. Eu posso planejar tudo hoje e, amanhã, o estudante
recebe alta. Daí eu tenho que fazer coisas novas para outra criança que acabou
de chegar", conta a professora Geane Yada, do Hospital Darcy Vargas, em
São Paulo. A carga horária também muda. O educador pode iniciar uma conversa e,
em instantes, ter de parar devido a uma indisposição. O indicado é que o aluno
consiga ter o mesmo conteúdo e a mesma carga horária da escola. Mas, com o
sobe-e-desce do tratamento, isso nem sempre é possível.
Escola de origem precisa dar apoio
aos professores
Assim que um estudante chega para
tratamento, o titular da classe hospitalar deve chamar a família e o futuro
aluno para conversar sobre sua situação. Normalmente, um coordenador pedagógico
articula essa fase. Em seguida, o docente entra em contato com a escola para
solicitar o currículo que a criança seguiria e também as atividades já
realizadas. Cabe à unidade de ensino encaminhar todas as tarefas previstas para
que o aluno faça em sua internação - inclusive as provas, que serão devolvidas
para a correção pelo educador da turma regular.
A professora Célia Wiczneski, coordenadora pedagógica do Hospital do
Trabalhador, em Curitiba, conta que essa relação não é fácil e, como já
aconteceu, a escola muitas vezes nem sabe que um estudante adoeceu. "Hoje
é mais fácil conversar. Mas, no início, eu precisei bater o pé. E, quando não
tinha solução, ligava para a Secretaria de Educação e contava o que estava
acontecendo." Foi com tanto empenho que garantiu a continuidade nos
estudos de vários jovens como Felipe Eduardo Alves da Silva, 9 anos, que está
na 4ª série e sofre de osteomielite (infecção óssea) e precisa de internações
sucessivas.
Para trilhar esse caminho, o MEC sugere articular a programação de atendimento
em dois momentos. No primeiro, o docente trabalha com os conteúdos definidos
num currículo próprio, geral, que tem por base os Parâmetros Curriculares
Nacionais. "É para evitar atrasos em caso de demora no envio dos materiais
pela escola de origem", explica Rosemary Hilário, coordenadora do Hospital
do Câncer. No segundo, já de posse da papelada, a equipe do hospital adapta o
trabalho pedagógico de acordo com o histórico do aluno, muitas vezes lançando
mão de uma avaliação inicial.
Uma articulação especial é necessária quando o estudante apresenta um quadro
clínico que requer idas e vindas constantes. É o caso de Eula Carla de Lima, 12
anos. Ela está na 6ª série, sofre com displasia (anomalia) na tíbia esquerda e
precisa passar por cirurgias frequentes, também no Hospital do Trabalhador.
Para ela, o ano escolar acontece simultaneamente na unidade regular em que
estava matriculada e no hospital.
Mas, como contam os profissionais, a questão mais delicada em todo o trabalho é
lidar com a morte. Enquanto esta reportagem estava sendo feita, uma aluna do
Darcy Vargas faleceu. Para Rosemary, são coisas que acontecem. "Temos de
encarar da mesma forma que faríamos em uma turma regular", argumenta.
"E, na hora que os familiares chegam para conversar com você, não podemos
esquecer que não somos psicólogos para dar orientações. A melhor coisa é ouvir."
Atualmente, já existem até cursos de especialização para ajudar os professores
a enfrentar e se adaptar a todas essas situações.
Obrigação está na lei
Em 1996, a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional deu início à formalização do funcionamento das classes
hospitalares, determinando aos governos "garantir atendimento educacional
especializado gratuito aos educandos com necessidades especiais,
preferencialmente na rede regular". Em 2001, o Conselho Nacional de
Educação, no artigo 13º da Resolução nº 2, tratou da obrigatoriedade do sistema
e utilizou, pela primeira vez, a nomenclaura "classe hospitalar".
Desde então, ficou definido que "os sistemas de ensino, mediante ação
integrada com os sistemas de saúde, devem organizar o atendimento educacional
especializado a alunos impossibilitados de frequentar as aulas em razão de
tratamento de saúde que implique internação hospitalar, atendimento
ambulatorial ou permanência prolongada em domicílio". Com base nas regras
anteriores, a Secretaria de Educação Especial do MEC elaborou em 2002 os termos
reguladores que detalham o trabalho dentro das unidades de Saúde. Cabe aos
estados e municípios adaptar essa legislação nacional e traçar orientações
específicas para cada rede de ensino.
Os cuidados para uma boa reintegração
A volta para a escola precisa ser pensada com antecedência e levar em conta
eventuais adaptações estruturais necessárias, como a construção de rampas para
os jovens que passam a usar cadeira de rodas. A montagem bem feita de uma pasta
ou arquivo, com toda a documentação sobre o período de internação, também é
essencial. Devem ser reunidos os exercícios feitos, os exames aplicados e os
relatórios com a carga horária total do atendimento, os conteúdos abordados e
as principais dificuldades encontradas, inclusive com as observações feitas
pelo docente.
A aplicação de provas para medir o nível do aluno em seu retorno não é
defendida pelo MEC. O ideal, para o órgão, é que a equipe pedagógica estude os
materiais enviados pelo hospital para chegar a um diagnóstico. A sensibilização
da comunidade escolar também é essencial e ajuda a evitar comentários maldosos.
Como contam os especialistas, a manutenção do vínculo com a unidade de ensino
durante o período de afastamento é a melhor arma contra os problemas, já que
todos estão cientes do processo.
Ensino que faz bem
Além de permitir que o aluno internado
não perca tempo nos estudos e continue acompanhando o currículo de sua escola,
as atividades nas classes hospitalares são apontadas por estudos como aliadas
da recuperação clínica dos estudantes. Uma pesquisa conduzida pela professora
Izabel Cristina Silva Moura, do Instituto Helena Antipoff, vinculado à
Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro, acompanhou 50 crianças por
um mês em três hospitais diferentes da cidade. Ela observou que o grupo que
assistia às aulas teve níveis de estresse menores do que os que não passavam
pelo atendimento, de acordo com uma escala especial para esse tipo de análise.
Informalmente, essa também é uma constatação diária das educadoras que
trabalham com jovens doentes. Em 2000, conta a professora Rosemary Hilário, do
Hospital do Câncer, a prefeitura de São Paulo deu férias coletivas para todos
os docentes, inclusive os que não atuavam nas unidades regulares. Até então, a
classe de lá ficava aberta nas férias. Durante o recesso, os médicos que
cuidavam dos estudantes internados relataram que as crianças usaram o dobro de
analgésicos. "E, quando eram perguntadas sobre as dores, elas não sabiam
responder", lembra. "Achamos que isso foi causado pelo ócio. Os
alunos precisam se ocupar,
esquecer que estão numa situação delicada", diz. Desde então, a classe
fica aberta o ano todo, com esquema de revezamento entre os professores no
período de festas.
Esta reportagem foi sugerida pelos
leitores Adenildes Ferreira, Salvador, BA, Adrine Silva
Brito, Jacareí, SP, Alessandra Faria, Brasília, DF, Amanda
Franco Sousa, Recanto das Emas, DF, Angela Maria Sanchez, São
Paulo, SP, Antonia Peret, Pouso Alegre, MG, Barbara Xavier,
Cotia, SP, Daniella Joana Pereira dos Santos, São Paulo, SP, Kilvia
Cristine de Oliveira Lima, Fortaleza, CE, e Mauriceia Correa,
Rolim de Moura, RO
Quer saber mais?
CONTATOS
Hospital Darcy Vargas, R. Seráfico Assis
de Carvalho, 34, 5614-040, São Paulo, SP, tel. (11) 3723-3839
Hospital do Câncer, R. Professor
Antônio Prudente, 211, 01525-000, São Paulo, SP, tel. (11) 2189-5000
Hospital do Trabalhador, Av. República
Argentina, 4406, 81050-000, Curitiba, PR, tel. (41) 3212-5870
BIBLIOGRAFIA
Atendimento Escolar no Ambiente Hospitalar, Eneida Simões da
Fonseca, 100 págs., Ed. Memnon, tel. (11) 5575-8444, 28 reais
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